Carta aberta a Cazuza

Caro Cazuza,

Sei que você tá bem morto, mas eu precisava recorrer a alguém e você foi o primeiro que me ocorreu. Como anda o Além-Vida?

Já que você é um morto, posso me permitir pular alguns preâmbulos e alguns fingimentos sociais, beleza? Por isso, não posso dizer que te achasse um grande cantor, mas servia. E também te achava um chato, tipo riquinho mimado enlouquecido com molho de beatnik. Calma, que o lance é assim: eu te achincalho agora e depois te elogio (é, né? preâmbulo social é coisa de vivo, desculpe). Continua lendo.

Tenho certeza que se convivesse contigo teria revisto minha posição pacifista e te socado na fuça. Até porque você era mais magro do que eu sou. Mas independente disso (ou seria apesar disso? Além disso?) suas letras e o que tinha pra dizer era sentido pra mim. Sentido no sentido (rá!) de que eu entendia aquilo.

Adoro coisas do tipo “disparo contra o sol, sou forte, sou por acaso”, ou “eu queria ter uma bomba, um flit paralisante qualquer, pra poder te negar no último instante”. Se eu quiser, fuçar a memória a internet eu acho mais (vou polvilhando pelo texto, tá? Pra não ficar chato – por mais que eu acho que você não ficaria constrangido).

Mas, bicho, preciso te falar: as coisas aqui tão muito loucas. O povo tá jogando futebol, tem choro, samba, rock e a coisa aqui tá feia. Bem feia. Tem personalidade símbolo da luta contra a ditadura chorando por uns mirreis de possível biografia deles. (cá entre nós, desculpe se é teu amigo, mas quem vai querer biografar o Djavan?).

Vamos pedir piedade, senhor, piedade, pra essa gente careta e covarde”.

Sabe o livro que tua mãe escreveu sobre você? Parece que a coisa caminha pro seguinte: se ela não quiser, ninguém mais pode contar tua história. Só vamos ter a visão dela. Num futuro longo e tórrido talvez eu não possa nem tornar pública essa carta pra você sem ter de remeter uns tostões pra alguém (então, vou aproveitar enquanto ainda posso falar alguma coisa).

Aí um cara que escrevia música com o Raul e depois quebrou o pau com ele virou o escritor brasileiro mais lido no mundo. É, o Paulo. Pode isso, cara? Então, ele queria que uns escritores convidados pra Frankfurt fossem amigos dele e não de quem escolheu a lista. Aí ele ficou puto e diz que não vai mais.

Nessa mesma Frankfurt, onde rola uma feira do livro e o Brasil é homenageado, na abertura, o Luis Ruffato, um escritor que acho que não é da sua época, levantou várias questões sobre nosso país. Aí vem gente dizer que ali não é lugar de falar essas coisas. Onde é, então? Trancadinho em casa? No protestródromo (nem vou te falar como a coisa tá lá no Rio)?

As coisas regrediram. Pessoas pedem menos liberdade, há cartilha de como protestar e tem escritor que acha que a literatura não é “lugar pra isso”. Se o Chico Buarque pode estampar decepção num dicionário, eu posso ilustrar decepcionado.

Cara, meus heróis não morreram de overdose (nem você, seu tratante). Meus heróis se mostraram uns merdas. Escritores que preferem o jogo da cena literária em vez do jogo da literatura; músicos que em vez de compor, lutam contra os direitos dos outros (os mesmos que avacalharam com o Simonal, legal lembrar). Escritor que se nega a falar da vida, músico que apoia censura prévia. Meus heróis são uma farsa.  Ideologia, eu tenho. Eu queria é que meus “heróis” e meus inimigos no poder também tivessem.

Ouça-me bem amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões à pó.

Preste atenção querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás a beira do abismo
Abismo que cavastes com teus pés.”

Abração,

Lielson

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